A Fada Azul e o Futuro da Humanidade
Inventamos coisas para melhorar nossas vidas, mas esquecemos que histórias reais são feitas de emoções reais.
Gigolo Joe: Ela adora o que você faz por ela, assim como meus clientes amam o que eu faço por eles. Mas ela não te ama, David. Ela não pode amar você. Você não é de carne nem de sangue. Você não é um cachorro, um gato ou um canário. Você foi projetado e construído especificamente como todos nós… e você está sozinho agora apenas porque eles se cansaram de você… ou o substituíram por um modelo mais jovem… ou ficaram descontentes com algo que você disse ou quebrou. Eles nos tornaram muito inteligentes, muito rápidos e tudo o mais. Estamos sofrendo pelos erros que cometeram porque quando chegar o fim, tudo o que restará seremos nós. É por isso que eles nos odeiam. E é por isso que você deve ficar aqui… comigo.
David: Adeus, Joe.
Esse é um trecho do filme Inteligência Artificial, de 2001, escrito por Stanley Kubrick e dirigido por ninguém menos que o grande Steven Spilberg.
Foi mal Spilberg, mas do fundo do coração eu gostaria de ter visto a versão do Kubrick.
O dilacerante diálogo acima acontece no final do filme, muitos séculos depois de David, uma criança mecânica (ou “Mecha”) extraordinariamente sofisticada, embarcar em uma busca para se tornar “um menino de verdade”, como Pinóquio, e se reunir com a mãe humana para a qual foi programado para amar. Os anos não o envelheceram, é claro. Ele é eternamente jovem, incapaz de adquirir a sabedoria e a perspectiva que vêm com a idade. Ele não pode compreender a passagem do tempo, muito menos a natureza absurda e quixotesca de sua missão. Ele só quer sua mamãe.
Falamos todos os dias sobre o impacto das inteligências artificias em nossas vidas. Esse é o assunto mais quente do momento. Há uns animados no meio de uma multidão de desesperados, desinformados e descrentes.
O clima é de tensão.
A saga de David é um retrato da nossa própria história. De muitas formas, estamos todos em busca de amores, aceitação e pertencimento.
Cada etapa de nossas vidas possuem capítulos recheados de buscas pessoais com essa combinação, uma tríade de afeto, aconchego e acolhimento. Seja na busca de parceiros, carreiras, aventuras, empreendimentos, etc.
Nossos sonhos são um jeito de dar sentido à nossa existência, e isso só é possível quando dividimos com outras pessoas.
Agora, com a chegada das inteligências artificiais, recebemos poderes semelhantes aos de David, mesmo que continuemos de carne, osso e sangue. Já é possível usar IA’s como extensões de nossas capacidades e nos tornar verdadeiros Mecha.
O problema é que esse poder extra não tapa o buraco em nosso peito, onde jogamos tudo aquilo que se parece com “amor”.
Talvez odiemos a ideia de uma máquina inteligente porque ela seria eterna. Talvez a odiemos ainda mais se ela for capaz de amar.
Se um robô pudesse amar genuinamente uma pessoa, que responsabilidade essa pessoa teria para com aquele Mecha em troca?
Essa é a pergunta que permeia todo o filme.
A grande questão entre pessoas e suas invenções é sobre “responsabilidade”. Sim, afinal tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.
Certo, Exupéry?
A dor na criatividade humana é o seu próprio combustível. Não inventamos inteligências digitais porque não tínhamos nada melhor para fazer. Criamos cérebros eletrônicos porque esbarramos em limites que exigiram não apenas novos passos, mas novos saltos.
E esse novo jeito de existir exige asas.
A criatividade humana não é uma pedra no meio do caminho, mas o desejo de criá-las quando não estão lá para nos fazer tropeçar. A natureza nos arrasta na direção do desconhecido, em busca de significado para a nossa própria existência.
Depois de ouvir toda a filosofia do gigolô, David apenas diz “Adeus, Joe”.
Não somos racionais.
Somos movidos pelo vento de nossas emoções, impelidos pelo desejo de “ser de verdade”, e encontrar a nossa porção de amor, afeto e aconchego que acreditamos merecer. Até lutamos contra cataventos imaginários se for preciso.
Não existe e não existirá guerra contra as máquinas.
Sempre haverá luditas em qualquer tempo e qualquer lugar. Mas, o grande desafio diante de invenções que mudam o rumo da história é abraçar a ética, que pode nos guiar com inteligência e segurança, dando voz a todos e a certeza de que cada um estará minimamente protegido física e emocionalmente. Sem utopias.
A Fada Azul não pode nos fazer “reais”.
O futuro da humanidade sempre dependerá do caótico labo sombrio de nossas emoções. Sombrio aqui não quer dizer simplesmente “ruim”, mas apenas imprevisível. Pois de lá vêm todas as ações que movem um exército de possibilidades.
Empresas inovadoras sabem disso e investem em conhecer e cuidar da saúde mental de suas equipes. Toda inventividade e espírito inovador brilha mais intensamente quando permitimos que as pessoas se sintam “de verdade”.
Somos todos Pinóquio. Somos todos David. Somos todos um buraco negro à espera de amor.
A Fada Azul é a soma de ideias que cultivamos juntos, acreditando que milagres acontecem sim, mas dependem do esforço coletivo de pessoas que encontram inspiração e o combustível certo para realizar seus sonhos.
Empresas prosperam quando seus objetivos deixam de ser a mera produção de bens e serviços, e passam a ser, única e simplesmente, a fabricação de relacionamentos.
Sem isso nos tornamos obsoletos, pois haverá sempre uma máquina pronta para limpar a nossa sujeira, dizer a direção certa e, quem sabe, talvez, em algum futuro, desejar ser amada ou transformada em um “ser de verdade”.
O nosso gritante desejo pelo toque da Fada Azul é ensurdecedor.
Queremos ser “de verdade”, e por isso inventamos tantas coisas, inclusive desculpas para não inventar nada. Somos reféns de nossas emoções e dependemos delas para conferir humanidade a cada uma de nossas atitudes.
No futuro, talvez, existam robôs apaixonados.
Existiria futuro se fôssemos todos eternos?
Talvez, as máquinas desejem ser iguais a nós ou o contrário.
Afinal, qual é o seu maior desejo?